sexta-feira, 21 de março de 2014

Cérebro 腦,o mar de dentro 髓海

Uma busca de evidências da atribuição de funções ao órgão cérebro no sistema etnomédico chinês, semelhante as que a moderna neurociência ocidental considera como função do cérebro ou sistema nervoso, não pode deixar de avaliar as noções produzidas nos antigos escritos chineses. Consultamos para esse texto, basicamente o Ling Shu, comentado por Ming Wong (1995) e o Nei Jing (内經) - Livro do Imperador Amarelo comentado por Bing Wang.

Em chinês cérebro pode ser traduzido por Nǎo (脑) ou nos textos antigos Suǐ Hǎi - suǐ (髓 medula) hǎi (海 mar) onde a medula é a substância jīng (精 essência) que é produzida internamente pelo Canal de energia do Rim (腎- shèn). É descrito como um dos seis órgãos extraordinários mencionado na literatura clássica (Hiep, 1987) um dos quatro mares (Si Hai- 四海 ) segundo (Wong, 1995)

O Nei King se refere ao cérebro como o mar de medula, aonde literalmente (lat. medulla) significa interior, possivelmente também interpretada como referência não anatômica (parte de dentro, como adotamos nesse trabalho) ou mais exatamente (talvez) como uma observação sobre a quantidade de sua matéria constituinte - a substancia branca (mielina e outros constituintes básicos como fosfoglicerídeos, colesterol cerebrosídeos etc. de natureza lipídica e coloração próxima do branco presente em maior quantidade no interior do crânio). Assim, pode se interpretar o que se lê no capítulo 33 do Ling Shu: "os mares são os locais de reunião da medula, do sangue, da respiração ou energia, dos líquidos e dos alimentos.” (Wong, 1995) Os outros 3 mares são: o mar de Sangue (Xue); o mar de Respiração; o mar de líquidos e alimentos.

Para compreender a natureza dos mares (numa perspectiva êmica ou do entendimento de quem assim designou) temos que recorrer sem dúvidas aos textos antigos do diálogo entre Imperador Amarelo que perguntou ao seu ministro Qi Bai - ...O mestre une o homem ao céu e aos quatro mares. Qual a relação entre eles? Obtendo a seguinte resposta: ...- "é preciso compreender claramente o Yin e o Yang, o interno e o externo e a localização dos pontos Rong e Shu a fim de determinar os "quatro mares"...(Wong, 1995)

Sabe-se que os pontos Shu na acupuntura, correspondem a regiões onde se concentra energia, são sensíveis à palpação, e a dor local indica uma alteração no órgão correspondente. Os pontos Rong (Roé) correspondem a pontos especiais com funções específicas (Machado; Sussmann) Na tradução que utilizamos do Ling Shu de Ming Wong traduz-se entretanto Shu como ponto de transporte - usualmente grafados como Luo.

De qualquer forma o texto que corresponde a descrição dos pontos Rong e Shu do "mar da medula" dá margem a várias interpretações como pode ser visto nessa reprodução integral que se segue:

..."No cérebro acha-se o mar da medula seu ponto de transmissão, em cima está colocado sobre o Gai (tampa) ou ápice do crânio; em baixo sobre o Feng Fu (habitáculo do vento) o ponto nº16 do Vaso Governador"

Em termos de neurofisiologia a estimulação de VG20, Bǎi Huì (百會) o ponto do ápice da cabeça corresponde aos territórios do nervo trigêmeo (ramos supra - orbitário e auriculo-temporal respectivamente da divisão oftálmica e mandibular do V par craniano) e do nervo occipital maior, que contém fibras de nervo raquidiano do segundo nervo cervical - C2. Os ramos do occipital maior do 2 nervo cervical e terceiro ramo occipital do 3 nervo cervical inervam a pele na região de VG16 - Fēng Fǔ 風府.(Chen, 1997) Uma correspondência à estimulação dos núcleos da ponte e áreas associadas ao controle da respiração, postura, vômito e regulação orgânica no tronco cerebral, em tese, pode ser testada como efeito dessa estimulção(?).

Enquanto símbolo (integrante sistema coerente de conceitos etnomédicos) sobretudo o Bǎi Huì (百會 - cem reuniões ou encontro de todos) possui uma função similar ao chakra da flor de mil pétalas e temas que se repetem nas mitologias asiáticas representando a sede da compreensão, destinos do Kundalini ou das "medulas" (Jing Qi) através da portas e palácios do meridiano do Vaso Governador ou Du - 督脈 (assim são denominados alguns de seus pontos).

A conexão do "mar de medula" com pontos do vaso governador também nos permite estender a este "órgão" as mesmas funções do sistema da pequena circulação Yin - Yang (vaso da concepção - vaso governador). Contudo como a medicina tradicional chinesa baseia-se na observação empírica, não poderia deixar de existir uma “clara” descrição de sua função verificada em afecções típicas como as que se seguem:

Lê-se no Ling Shu: ..." o mar da medula em excesso significa um relaxamento muscular que ultrapassa a medida"... O que pode muito bem ser referências ao coma, estupor ou paralisia flácida numa escala de gradações do relaxamento e ..."o mar de medula em insuficiência provoca zumbidos de ouvidos com atordoamento do cérebro. (vertigens). Observa-se dores intensas nas pernas, vertigens e perturbações na vista. O relaxamento incita ao sono"...

Também não é por acaso que o tratamento de acupuntura que utiliza os referidos pontos (VG20, VG16) destina-se a afecções neuropsiquiátricas (esquizofrenia, comportamento maníaco, depressão) manifestações neurológicas (apoplexia, afasia, hemiplegia, convulsão, falta de memória, cefaléia, tontura, tinnitus, obscurecimento da visão) e psicossomáticas (rigidez do pescoço, palpitação, prolapsos do reto e útero, febre) (Livro dos 4 Institutos; Machado)

Como todos os “órgãos” classificados na medicina tradicional chinesa como Fu (腑) (ID; VB; E; IG; B; SJ e Útero) o cérebro tem a função de receber, absorver (digerir), transmitir (excretar) opondo-se a função de armazenamento, produção de substancias essenciais dos órgãos Zàng (脏) o que também reforça a idéia deste como elemento de adaptação, conexão, também enunciada no Nei-ching e Su-Wen ao afirmar que o cérebro (mar de medula) articula as relações entre o Jing (energia ancestral que vem dos rins) e o Shén (神) a energia comandada pelo coração. (Livro dos 4 Institutos).

Sem pretender adentrar nas discussões filosóficas que cogitam a possibilidade do cérebro conhecer a si mesmo, reforçando a necessidade de modelos analógicos, metafóricos, é notável a semelhança da concepção chinesa com os modelos da neurofisiologia russa (pavloviana) especialmente quanto a ser esse órgão um elemento de conexão interior - exterior, observando-se porém que as origens e sistemas de referência conceituais desse (órgão / símbolo) são indiscutivelmente distintos. Interessante também é a recomendação do Imperador Amarelo quanto ao método de "observar-se" e conhecer o shen - a mente o espírito, que comanda o hsing (corpo) no Nei Jing (内經)

"O shen não pode ser escutado com o ouvido, o olho deve ser brilhante de percepção e o coração deve ser aberto e atento para que o espírito se revele subitamente através da própria consciência de cada um. Não se pode exprimir pela boca; só o coração sabe exprimir tudo quanto pode ser observado. Se presta muita atenção, pode-se ficar a saber subitamente, mas também pode-se perder de repente esse saber. Mas shen, o espírito, torna-se claro para o homem como se o vento tivesse varrido as nuvens. Por isso se fala dele como do espírito."

Observe-se também a semelhança com as técnicas de meditação e auto observação que, como comenta Eliade, conduziu a China ao desenvolvimento de uma psicologia que reconhece pelo menos 4 estados de consciência: a diurna; a dos sonhos; a do sono sem sonhos; e a "cataléptica" correspondente à “viagem à origem das coisas” (um estado completamente inerte sem aparência de ser vivo); experimentadas racionalmente após exercícios respiratórios e de atenção que permitem o acesso lúcido a cada um desses estados.

Sem as medidas do eletroencefalograma, somente possíveis em meados do século XX, os antigos chineses identificaram e possuíam propostas de intervenção nos fenômenos bio-elétricos atualmente mapeados por esse aparelho, inclusive dos estados de anestesia (ondas teta e delta), não mencionados por Eliade mas conhecido por faquires e acupunturistas. Exercícios de meditação relativamente semelhantes ao que conhecemos como técnicas de treinamento autógeno são conhecidos e amplamente divulgados com dezenas de variações em escolas indianas, chinesas e tibetanas principalmente.

As técnicas de exploração da consciência – o conceito básico e essencial para compreensão da neurofisiologia e algumas práticas clínicas derivadas (neuropsicologia, neuropsiquiatria, psiconeuroimunoendocrinologia, etc.) também aproximam a medicina tradicional chinesa das demais medicinas orientais e das proposições terapêuticas da reflexologia. O mesmo pode ser dito do conceito de “atenção”.

Destaque-se porém que o princípio de se obter conhecimento a partir da introspecção pode ser a diferença essencial que talvez explique a natureza da intuição que orientou a série de descobertas e domínio de funções cerebrais como nos exemplos citados, nas técnicas de controle da mente e comportamento.

Não se pode esquecer também que a etnomedicina asiática identificou diversas substancias psicoativas a exemplo das utilizadas na medicina tradicional chinesa tipo: o Ma Huang (Efedra sinica), Pa-Kuo (Ginkgo biloba), Da-ma (Cannabis sativa); Ginseng (Panax de várias espécies), Jie Cao (Valeriana officinalis), as plantas absorvidas da Índia como a Papoula (Papaver somniferum) e o lendário soma da medicina védica, interpretado por Levi Strauss (1993) como sendo o cogumelo Amanita muscaria.

Deixando fora tanto o uso compostos psicoativos asiáticos e os princípios que nortearam os experimentos empíricos que resultaram na acupuntura (segundo Carneiro, 2000, uma técnica de neuromodulação capaz de intervir na regulação orgânica) para compreender a noção de cérebro na medicina chinesa é essencial compreender a sua própria noção (êmica) de Conhecimento e Sabedoria.

Alguns exemplos poderiam ser escolhidos de Lao Tsé, Confúcio ou do próprio Imperador Amarelo mas, esse achado do Bardo Todol (Livro III) em forma de preceito traduzido da língua sino-tibetana pode ilustrar a noção de conhecimento que utilizam:

"A melhor coisa para a inteligência inferior é ter fé na lei de causa - efeito.
A melhor coisa para uma inteligência comum é reconhecer nela, bem como fora dela, o jogo da lei dos opostos.
A melhor coisa para uma inteligência superior é ter plena compreensão que não se separa do conhecedor, do objeto do conhecimento e do ato de conhecer
."

Abismo conceitual

A aproximação entre uma teoria sobre a mecanismos de ação da acupuntura e fisiologia do sistema nervoso depara-se ainda com a ausência de um consenso no próprio ocidente, entre as teorias ou mecanismos de explicação neuropsicológica e mesmo fisiológica do cérebro.

A integração de distintos sistemas teóricos como por exemplo psicanálise - reflexologia; reflexologia - behaviorismo (medicina comportamental) ou entre a concepção de um cérebro réptil no modelo triúnico de Paul MacLean e os modelos funcionais de Luria / Anokhin (unidades de regulação de tonus e vigília - recepção armazenagem de informações - programação, verificação de atividades) ainda vai exigir considerável esforço e tempo, quanto mais uma integração entre sistemas teóricos concebidos em princípios cognitivos de culturas distintas.

O conhecimento oriental do cérebro e suas funções

A noção antropológica de “invariante biológico” seja uma estrutura anatômica e sobretudo sua função (fisiológica), apesar das críticas dos etnógrafos quanto a sua aplicação e poder explicativo das normas culturais e crenças específicas, ainda é uma perspectiva segura de se comparar aspectos específicos dos sistemas etnomédicos.

Levi Strauss manifesta-se sobre a especificidade do biológico com a noção de zoema, ao comparar mitos sobre animais, segundo ele, essa classe especial de mitema ou elemento utilizado na construção dos significados do mito. Para ele um zoema corresponde a espécies de animais com uma função semântica que lhes permite manter invariantes a forma de suas operações no espaço em que, a geologia, o clima, a fauna e a flora, não são os mesmos" (Levi - Strauss, 1985).

O cérebro apesar de sua plasticidade, é sem dúvida um invariante biológico e talvez possa ser um elemento de comparação entre etnosistemas que privilegiem formas de intervenção equivalente à nossa neurociência e especialidades profissionais. (anestesistas, neurologistas, psiquiatras, psicólogos, fisioterapeutas etc.). Espero com essa descrição chinesa do “mar de dentro” ter contribuído para o entendimento do cérebro como um mitema ou elemento utilizado na construção de significados em distintas culturas e que essa utilização torne mais compreensível para nós as estranha concepções de chakras, meridianos, prana, qi, energia vital etc. aperfeiçoando a clínica.

Referências

Bardo Todol, O livro tibetano dos mortos. tradução Pugliesi, M. SP, Madras, 2003

Carneiro, Norton Moritz. Acupuntura baseada em evidências. Florianópolis, SC, Ed. do autor, 2000

Chen, Eachou. Anatomia topográfica dos pontos de acupuntura. SP, Roca, 1997

Eliade Mircea História das crenças e idéias religiosas Tomo II Vol I RJ, Ed Zahar, 1983

Hiep Nguyen Duc. The dictionary of acupuncture & moxibustion, a pratical guide to traditional chinese medicine.UK, Thorsons Publishers, 1987

Levi-Strauss, C. A Natureza do Pensamento Mítico, IN: A Oleira Ciumenta São Paulo, Ed Brasiliense, 1987

Lévi-Strauss, Claude. Os cogumelos na cultura. in: Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural dois. RJ, Tempo Brasileiro, 1993

Livro dos 4 Institutos – Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Beijing; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Shanghai; Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Nanjig; Academia de Medicina Tradicional Chinesa. Fundamentos essenciais da acupuntura chinesa. SP, Ed. Ícone, 1995

Machado, Jurecê J. Curso Básico de Acupuntura. BA, Edição do Autor, 1993

Sussmann, David J. Que é a Acupuntura? RJ, Ed Record 1973

WANG, Bing. Princípios de Medicina Interna do Imperador Amarelo (Dinastia Tang – Edição bilíngue). São Paulo. Editora Ícone. 2001

Wong, Ming. Ling Shu, base da acupuntura tradicional chinesa. SP, Andrei, 1995


Ver também

Dian Kuang - 癫狂
http://etnomedicina.blogspot.com.br/2011/09/dian-kuang.html

A energia psíquica (libido) em um ponto de vista quase chinês

3 comentários:

Unknown disse...

Olá! Ótimo, me ajudou muito. Gratidão.

Unknown disse...

Muito bom!
Por acaso vcs tem algum material sobre a acupuntura e a bexiga neurogênica??
Gratidão.

Paulo Pedro disse...

...o princípio de se obter conhecimento a partir da introspecção pode ser a diferença essencial que talvez explique a natureza da intuição que orientou uma série de descobertas e domínio de funções cerebrais nas técnicas de controle da mente e comportamento do sistema de chakras, da acupuntura e da craniopuntura.

Um bom exemplo, como citado, são as técnicas de meditação e auto observação, como comenta Eliade, conduziu a China ao desenvolvimento de uma psicologia que reconhece pelo menos 4 estados de consciência: a diurna; a dos sonhos; a do sono sem sonhos; e a "cataléptica" correspondente à “viagem à origem das coisas” (um estado completamente inerte sem aparência de ser vivo); experimentadas racionalmente após exercícios respiratórios e de atenção que permitem o acesso lúcido a cada um desses estados.

A aplicação de agulhas e outras formas de estimulação também são utilizadas. É notável as semelhanças entre tais sistemas, incompreensível, talvez seja, sem considerarmos o método acima referido (introspecção). Naturalmente não podemos descartar o poder hipnótico das palavras e a eficácia simbólica dos sistemas de crença. O desafio é não ver o que há por trás dos esquemas de auto-promoção e comércio dos qua advogam para o que tem se convencionado como medicina baseada em evidências e pseudociência.