quinta-feira, 28 de junho de 2012

Além do ciclo vital

Algumas reflexões da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), enquanto outra racionalidade médica, equiparam-se à “exatidão” da medicina ocidental cosmopolita na determinação das fases do ciclo do vital, descrição dos modos de adoecer e morrer e/ou do indivíduo desenvolver hábitos de vida saudáveis.

Por exemplo, segundo o "Livro do Imperador Amarelo", durante as cinco estações do ano (para nós quatro) se deve ter cuidados específicos para enfrentar os perigos da umidade, frio, insolação, calor e secura, que se apresentarem, com comportamentos e dietas. Na MTC também se distinguiu fases da vida humana e se desenvolveu diferentes recomendações para os diversos períodos do ciclo vital, inclusive quanto reprodução em idades avançadas e “andropausa” (diminuição da capacidade de ejaculação e vitalidade na paternidade em idade avançada do pai). Naturalmente descreve-se também as alterações da fase reprodutiva feminina, bem mais evidentes e referidas nos sistemas etnomédicos onde a biologia da reprodução é mais conhecida, com identificação da hereditariedade em linhagens de parentesco de "descendência dupla" (matripatrilinear), como não se nota em algumas outras culturas ditas primitivas com sistemas exclusivos (matrilinear ou patrilinear).

O notável é que desenvolveu-se na China uma atenção especial à subjetividade e aspectos não mensuráveis da realidade biológica. A medicina tradicional chinesa estendeu sua ciência além da longevidade, se interessa tanto pela imortalidade, ou pelo desenvolvimento da energia (do espírito) com esse fim, como pelo processo saúde – doença.

A imortalidade e existência fora do corpo, para MTC, não são apenas concepções de cultos religiosos, podem ser estudadas nos diversos textos imperfeitamente designados como “alquimia chinesa” (a exemplo do “Segredo da Flor de Ouro” comentado por C. G. Jung) de modo integrado à prática clínica. Tais textos podem ser considerados exemplo de uma linha evolutiva de racionalidade distinta do estabelecido nos primeiros cânones médicos equivalentes à racionalidade da medicina védica ou hipocrática, que juntamente com o Nei Ching – “Livro do Imperador Amarelo” se constituem como os primeiros textos médicos. Observe-se que estes textos possuem um elemento diferenciador de outros sistemas etnomédicos, na concepção de Kleinman, a tradição escrita e sobretudo a relação mestre - discípulo em escolas estabelecidas.



Ao contrário do que pensam alguns, não houve uma estagnação do desenvolvimento da lógica conceitual "científica" no Oriente e desenvolvimento no Ocidente pós renascentista. A partir dos padrões de explicação "teórica" que se observam nos textos gregos hipocráticos e orientais de períodos anteriores, o que se pode constatar é que foram caminhos distintos, quiçá advindos de sua ancoragem na esfera do sensível e intuição ou na percepção como distinguiu Lévi-Strauss a ciência do concreto das mitologias e a ciência (lógica cartesiana) ocidental.

Diante desta maravilha de vídeo “Cardiovascular Continuum”, desenvolvido pela Visual MD (ver link) a partir da atual, fragmentada e analítica concepção médica ocidental, observe-se que no mesmo não se torna claro, (assim como a prática clínica ocidental) quem decide ou escolhe os comportamentos que se tornarão hábitos saudáveis ou não. Quem é o sujeito (individual ou coletivo?) que determina as condições e qualidade de vida ou o indivíduo que transforma sua história e seu tempo. (?) O mundo ocidental só desenvolveu parâmetros de resposta para questões como estas na psicanálise (nossa moderna mitologia, segundo Lévi-Strauss) ou nas modernas concepções interdisciplinares de saúde coletiva (medicina social), mas não no modelo cartesiano - positivista da ciência.

Observe-se também que as questões da subjetividade da energia psíquica (libido, assertividade, inteligência ou energia vital) já estavam presentes no livro do “Imperador Amarelo” ou seja bem antes de se desenvolverem, na China, toda uma ciência sobre meditação, com considerável influência do budismo e hinduísmo, configuradas posteriormente (sob influência ocidental) como religião.

O Imperador Amarelo perguntou: "Como determinar a longevidade de um homem ou se sua vida será curta, quando a energia suplantar o físico e vice-versa?" Bogao respondeu: "Para um homem saudável, quando sua energia estiver ultrapassando o físico, ele terá vida longa; para aquele cujo físico e músculos forem muito finos, mesmo que sua energia suplante o físico, como o físico e os músculos estão exaustos ele morrerá muito cedo. Se o físico da pessoa não estiver muito emaciado, mas sua energia primordial já estiver declinando, embora o físico esteja superando a energia primordial, a doença ainda oferecerá perigo". Livro do Imperador Amarelo (cópia de Bing Wang - Dinastia Tang / SP. Icone 2001, p. 524)

O "ocidente" por privilegiar o modelo biológico das doenças, a síntese química de fármacos em sua visão reducionista, motivada por interesses no desenvolvimento industrial e comercial, abandonou as concepções de energia vital e ética do sagrado, com se fossem pseudociências, relegou práticas como a homeopatia, naturopatia e mesmo a acupuntura, na própria China Imperial, a um segundo plano de valor social (sem investimentos de pesquisa). Porém, apesar de tudo, sem dúvida também por uma eficácia clínica, tais medicinas que se fundamentam nas concepções de energia vital ou em uma dinâmica espiritual - psíquica, sobreviveram e são ainda praticadas, em algumas regiões do planeta re-integradas ao paradigma da ciência médica como prática alternativa ou complementar. O desafio é, como diz meu amigo Dr. Fernando Hoisel, é ver em todas essas “ciências”, a ciência, nas “medicinas” a medicina. Além, é claro, do desafio cotidiano atual de formar bons profissionais de saúde, numa perspectiva ética e científica, controlando suas atividades por autoridades sanitárias governamentais... e como dizia o velho mestre...a arte é longa e a vida breve.


Referências

Bichen, Zhao. Tratado de alquimia y medicina taoista. Madrid, Miraguano Ediciones, 1984

Jung, C.G. O segredo da flor do ouro, um livro de vida chinês. RJ, Vozes, 1992

Kleinman, Arthur Concepts and a Model for the comparison of Medical Systems as Cultural Systems. IN: Currer,C e Stacey,M / Concepts of Health, Illness and Disease. A Comparative Perspective, Leomaington 1986

Livro do Imperador Amarelo (Bing Wang - Dinastia Tang). SP. Icone 2001

Levi-Strauss, C. As estruturas elementares do parentesco.SP, Vozes, 1976

Levi-Strauss, C. O Pensamento Selvagem São Paulo, Companhia Ed Nacional, 1976

Levi-Strauss, Claude. A eficácia simbólica (1949) in: Antropologia estrutural. SP Cosac Naify, 2008


Para saber mais sobre Saúde Comportamento ver: http://medicinacomportamental.blogspot.com.br/


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Cardiovascular Continuum